Crimes de guerra

(António Guerreiro, in Público, 12/08/2022)

António Guerreiro

O que são “crimes de guerra” — como os que têm sido apontados à Rússia, mas também à Ucrânia — no tempo da guerra técnica, da massificação e mecanização do combate conduzido a uma distância cada vez maior (que as aproximações não anulam) e em que a aniquilação e a destruição se tornaram eminentemente impessoais? A resposta é simples e dolorosa: a actual categorização de “crimes de guerra” não é mais do que um vestígio piedoso de uma ética que os mecanismos gigantescos da guerra actual tornaram completamente anacrónica: a ética guerreira fundada em regras que podiam ser as do ódio pelo inimigo, mas sem que, pelo menos num nível superestrutural, deixasse de haver a afirmação de outros valores.

Assine já

Não começou agora esta experiência da guerra em que tudo é reduzido à categoria de material, numa guerra de materiais e, num grau crescente, de armas imateriais. A Primeira Guerra Mundial foi muito traumática exactamente porque inaugurou esta nova forma de belicismo. E, num fragmento de Minima Moralia, Adorno sintetiza assim a lição da Segunda Guerra Mundial: “Se a filosofia da história de Hegel tivesse abrangido a nossa época, as bombas-robots que eram os V2 de Hitler teriam o seu lugar entre os factos empíricos que ele [Hegel] considerou que exprimem o estado alcançado pelo Espírito do mundo”. E, ampliando esta ideia de que o “espírito do mundo” pôde ser visto montado nas asas de um foguete sem cabeça, e não num cavalo (como o viu Hegel), Adorno tira a “satânica” conclusão de que o “sujeito” desapareceu — já não há piloto no avião, já não há uma pessoa detentora da arma. Muita energia foi gasta pelos sujeitos “para que já não exista o sujeito”, diz Adorno.

Não há exemplo mais eloquente deste desaparecimento do sujeito (e, sem sujeito, onde está a o crime e o criminoso de guerra?) do que a execução de um inimigo, sem protocolos judiciários e reduzido à condição de simples alvo vulnerável, mesmo que se esconda nos antípodas. Foi o que aconteceu recentemente ao líder da Al-Qaeda, o egípcio Ayman al-Zawahiri, morto por um drone, no Afeganistão.

Um drone, na definição técnica que podemos ler em Théorie du drone, de 2013, um livro essencial para percebermos as características das guerras actuais, da autoria de um investigador em filosofia no Centre National de la Recherce Scientifique chamado Grégoire Chamayou, é uma câmara voadora de alta resolução, telecomandada e equipada com um míssil. Chamayou também o designa como um OVNI, isto é, um objecto violento não identificado que pulveriza completamente as categorias clássicas que definiam a guerra, incluindo as próprias categorias de acção e lugar. O que é um lugar onde decorre a guerra e onde é que uma acção se realiza (a acção de matar, por exemplo) quando essa acção se estende entre pontos tão distantes como uma sede da CIA, em Washington, ou uma base militar no Nevada e uma aldeia do Afeganistão? O drone predador, que substitui a guerra por uma caça ao homem, fica evidentemente fora da equação dos “crimes de guerra”. É a arma da impunidade absoluta: mata sem que se cometa crime e sem que chegue a haver guerra. Do ponto de vista de um tradicional ethos militar, o drone é a arma dos cobardes: não requer bravura nem espírito de sacrifício e erradica totalmente a exposição à violência por parte de quem o comanda. Quem o usa é completamente invulnerável.

O livro de Chamayou encerra com um capítulo que avança com uma hipótese sinistra: a de que os drones passarão a ser telecomandados nos laboratórios de investigação militar por robots. Esta “robótica letal autónoma” não é ficção científica, é o resultado de todo o conhecimento e energia despendidos para que “já não exista o sujeito”, como previu Adorno. Os drones accionados e telecomandados por robots não requerem a presença do humano em nenhum momento da operação, nem acima dela. São as máquinas que tomam a decisão de matar, já não há ninguém a carregar no botão. Uma das vantagens desta robotização que expulsa o humano é que se tira o tapete a quem tem contestado a utilização dos drones. E os mais veementes nessa contestação, diz-nos Chamayou, nem sequer foram os pacifistas, foram os pilotos da aviação militar, os “cavaleiros do céu”, essa casta superior que de repente se viu desapossada da sua nobreza, baseada no ethos guerreiro, isto é, no heroísmo, na gravidade e na virilidade de que ele sempre se serviu.

“Crimes de guerra”? Que conversa tão antiga, tão mole, tão destituída de sentido quando percebemos o que é a guerra actual.



Gosta da Estátua de Sal? Click aqui.

2 pensamentos sobre “Crimes de guerra

  1. De tanto exercício intelectual a driblar conceitos etéreos, a realidade vai desaparecendo debaixo dos pés e o pensador acaba pairando no tecto afunilado da sua torre de marfim.

    O que serão, pois, crimes de guerra? E porquê começar logo por apontar o dedo à Rússia e à Ucrânia, no grande estilo da propaganda moderna ocidental, terraplanando passado e história, para cultivar a amnésia e a ignorância sobre o maior criminoso da História humana, a saber, o Ocidente dos valores e dos Direitos Humanos, ou simplesmente, o Capitalismo?

    Se o “’sujeito’” desapareceu, “já não exista o sujeito”, como pretende António Guerreiro (AG), ainda que citando Theodor Adorno, para quê falar de crime, de guerra, de crimes de guerra? O crime pressupõe um sujeito. A guerra é um fenómeno humano. A natureza não conhece crimes, nem guerras. A marca de água do crime é a sua humanidade. A guerra é um produto da nossa racionalidade. Esta para se afirmar precisa e evoca a irracionalidade. A guerra seria então o resultado da nossa racionalidade extremada, a explosão da nossa animalidade comprimida, a Razão animalizada.

    A guerra é o crime-mor e por excelência. Falar de “crimes” no crime servirá para o diluir, mistificar, por fim, apagar. E se ainda por cima nega o sujeito do crime, então é o apagamento total, a escuridão absoluta, o crime reduzido à sua forma mais sofisticada, à sua essência metafísica. O crime puro e imaculado. Isto não se pode apontar à Rússia nem à Ucrânia, mas sim à propaganda dos Estados Unidos na sua versão mais hollywoodesca. Enfim, à caricatura de pensamento que nos está a ser imposto.

    Theodor Adorno era não só um grande senhor no pensamento dialéctico mas também um mestre da ironia. A sua origem judaica deu-lhe o witz típico dos judeus, a anedota com esprit. Há quem veja na sua Dialéctica Negativa uma contraposição ao optimismo dialéctico de Marx e mesmo de Hegel. As passagens de Adorno citadas por AG devem ser vistas como um misto de negatividade e ironia. E de facto, onde se revela com mais acuidade o progresso, o “Espírito do Mundo” de Hegel, a não ser no armamento, nas técnicas de destruição? Não é isto uma grande ironia da nossa condição humana e da tão propagandeada busca da felicidade pelo capitalismo?

    Como já foi dito, numa guerra o sujeito está sempre presente. Seja à distância, de forma remota, envolto em virtualidades, robots e inteligências artificiais ou em experiências de laboratório. A guerra na Ucrânia começou com a expansão da NATO, o “sujeito”, para Leste. Depois do gesto pacífico, mas ingénuo, da velha União Soviética, a expansão da NATO foi a primeira declaração de guerra à Rússia. A NATO é a autora, a grande protagonista, o “satânico” Sujeito dos “crimes de guerra” em curso.

Deixar uma resposta

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.